7 de agosto de 2010

Tráfego de mar

Ele aprendeu para ela como é que se ia vivendo, estalou os dedos pela primeira vez começando a ser. Depois finalmente nasceu pra ela. Tinha os olhos exaustos e as mãos ásperas de tanto trabalho, mas foi. Esteve com ela pela primeira vez, mesmo depois de tanto tê-la visto e tê-la vivido e tê-la sido. Dormiu e sonhou com ela. Navegaram calmamente em mares desconhecidos e distantes do mapa, desceram chaminés e deixaram presentes. Por medo de voltar a apodrecer, ele guardou consigo uma grande parte dele, usava o mínimo. Ela fingia que não notava, ou melhor, convencia a si mesma de que estava enganada ao pensar que faltava alguma peça, não confiou no poder que tinha sobre ele, no poder de ler o que ele era e simplesmente navegou. Até que um dia, ao acordar no barquinho, percebeu que estava só, só tinha restado dele a sua letra estampada no bilhete deixado embaixo de um dos remos. Ele achara insegurança no mar e fora para uma suposta terra firme. 
As lágrimas salgadas que escorriam do rosto dela cairam, insignificantes, no mar também salgado, até o sol secar seu rosto e ela ficar feliz por ter remos. Ele vira o sol durante o dia e o céu limpo e brilhante da noite e percebeu que ela era criadora de sorrisos, rotas e céus. Ele nadou de volta até ela. Pensou em desistir, mas lembrou-se do seu nascimento e continuou. Ela puxou-lhe para dentro do barquinho mas lembrava-se do percurso que estava seguindo. Ele a olhava de olhos calados, ela escutava de ouvidos surdos e só ao escurecer ele pôde descrever o que faltava. Falou sobre os monstros que moravam dentro dele e sobre como era sem realmente ser. Falou também que seu sorriso não era seu, mas apenas da sua boca. 
Ela fez pra si um barquinho de papel e ele ficou com o de madeira. Ela parecia estar num navio, mas não sabia ele o quanto cortava o vento ao bater no seu rosto. Ele se sentiu sozinho por vê-la ali ao lado, calada, limpa e levada facilmente pelo vento. Pediu carona. Entrou devagar no barquinho branco e frágil e disse-lhe que só voltaria à terra firme se fosse com ela. Foram os dois pelo oceano redondo buscando o ponto final onde o azul do mar se fundia com o azul do céu. Sabiam que demorariam a chegar, mas enquanto isso ele podia aprender aos poucos a sorrir como ela, com os pulmões e a veias, ao invés de usar apenas os músculos como antes. 
Um dia ela parou para nadar por perto do barquinho, divertiu-se nadando livre como se voasse no meio dos pássaros molhando-se em nuvens. Ele não quis ir, preferiu olhá-la de longe e sentir os olhos arderem de saudade. Ela voltou, ele a abraçou e aqueceu. O barquinho molhou um pouco mais e ficou ainda mais frágil, mas era só confiar no calor do sol que tudo voltaria ao normal. No dia seguinte, ao nascer do sol, ao invés de esperarem quietos que os raios fizessem seu trabalho, ele se mexeu e sem querer fez um pequeno furo no fundo do barquinho. Agora sim estão calados, se olhando, pedindo a ajuda do sol e pensando em como será o resto da longa viagem.

0 comentários:

Postar um comentário